Não sei se já se apercebeu disso mas julgo que muitos
médicos de família já se deram conta de que, nos tempos que correm, é cada vez
mais frequente a realização de estudos de investigação clínica nas unidades de
saúde da área dos cuidados primários.
Quase todos esses estudos são de tipo observacional, quantitativos,
transversais. São questionários que se aplicam a utentes, familiares e
cuidadores ou a profissionais de saúde. A grande maioria insere-se no contexto de
graduações académicas – mestrados ou doutoramentos.
A realização destes estudos depende naturalmente da
autorização dos dirigentes das unidades onde se concretizam, cabendo aos
Conselhos Clínicos do ACES especiais competências na matéria.1 Em
algumas ARS foram criadas Comissões de Ética para Saúde (CES) tendo em vista
emitirem pareceres que ajudem os dirigentes nas suas decisões.
Há quem pense que os estudos observacionais ou, por
outras palavras, aqueles em que não há intervenção sobre os participantes não
carecem de parecer ético. Todavia, esta opinião assenta em alguns equívocos que
importa resolver.
Em primeiro lugar, convém clarificar que os pareceres das
CES não são vinculativos nem obrigatórios – os dirigentes são livres de deferir
ou indeferir os pedidos de autorização qualquer que seja o sentido dos
pareceres da CES e, por outro lado, podem decidir sem pedir parecer. Por sua
vez, aos investigadores também interessa terem um parecer de uma CES pois
algumas revistas, como esta, o exigem.
Em segundo lugar, o papel das CES é zelar pelos direitos e
interesses dos participantes. Deste modo as comissões apreciam os projetos,
verificam os conteúdos dos inquéritos e as metodologias (nomeadamente quanto à
forma como os participantes são convidados e recrutados), confirmam os
compromissos de confidencialidade e anonimato, reconhecem a pertinência e
relevância dos objetivos. Ora, estas finalidades da apreciação de projetos são
independentes do tipo de estudo e são manifestamente importantes, sejam os
estudos observacionais, experimentais ou outros.2
Também corre a opinião de que em estudos observacionais não há necessidade
de obter, por assinatura de documento, o consentimento informado dos
participantes. Aparentemente este outro equívoco resulta de um entendimento
desfocado do que é o consentimento informado – é afinal olhar só para a palavra
«consentimento » e menorizar a palavra «informado».
A utilização para fins de investigação de dados pessoais e de depoimentos
dos participantes, sejam utentes ou profissionais de saúde, implica que os
investigadores se comprometam a não os utilizar para outros fins, garantam não
identificar os participantes na publicação dos resultados, expliquem em que
consiste o estudo, não escondam os eventuais incómodos causados pelo estudo,
etc. É por isso que um documento formal para dar informações e obter
consentimento se torna necessário. Ele representa uma forma de «contrato »
entre investigador e participante, feito em duplicado, em que cada parte fica
com uma via assinada por ambos – o primeiro «outorgante» guarda-o para provar
que pediu e obteve consentimento perante eventuais auditorias; o segundo
«outorgante» guarda-o para reler, revogar se assim o entender ou reclamar se
verificar eventual incumprimento do garantido. É óbvio que a linguagem deverá
ser tão simples quanto possível, livre de termos técnicos (exceto quando os participantes
forem profissionais de saúde) e globalmente adequada à literacia dos
participantes a recrutar.3
Existe um outro ponto que dá origem a mal-entendidos – trata-se do
anonimato dos dados tratados neste tipo de estudos.
Quando os investigadores contactam diretamente com os participantes, não podem
ignorar a identidade destes, mas o que se lhes pede é que mantenham o anonimato
(nunca revelem a sua identidade). Esta garantia não se deve confundir com a
anonimização de dados de saúde que consiste na entrega, por parte das
instituições, normalmente a partir de fontes informáticas, de dados expurgados
de elementos de identificação. Outra situação diferente será a dos inquéritos de
autopreenchimento voluntário e anónimo com devolução indireta (por exemplo,
devolução por correio ou introdução em caixa fechada), pois neste caso não há
lugar a assinatura de documento de consentimento.
Assim, note-se que a utilização de dados de saúde para
fins de investigação, no respeito pela lei e pelos princípios da
confidencialidade e privacidade, só é possível quando os respetivos titulares
informada e expressamente o consintam ou quando os dados são fornecidos aos
investigadores de modo anonimizado. Na impossibilidade de se conseguir qualquer
das condições aqui referidas, um estudo pode ainda ser autorizado, se for
efetuado por profissionais da própria instituição (com natural e habitual
acesso aos dados), quando se revista de excecional interesse público e receba parecer
favorável da Comissão de Ética local.4
Já quando os estudos são realizados por médicos do internato
(colocados em fase de formação nas unidades de saúde onde decorram os estudos)
e consistem em revisões casuísticas amplas, desde que garantam, nos respetivos
protocolos de estudo, preservar o anonimato dos titulares e não pretendam criar
uma base de dados com elementos de identificação pessoal dos utentes, cremos
que poderão ser autorizados pelos Conselhos Clínicos, mediante o parecer dos
respetivos Orientadores de Formação (a quem aliás cabe também a supervisão do
estudo e da sua integridade ética).
Espero bem que estas linhas o possam ajudar caso esteja a
pensar em realizar alguma investigação. Elas representam as opções que têm sido
seguidas pela Comissão de Ética da ARS Norte nos três anos de funcionamento desde
que foi criada. O número de processos cresce todos os anos (em 2010 e 2011
dobrámos e triplicámos os números de 2009). Penso que poderá encontrar informações
úteis nas páginas da CES do portal https://www.arsnorte.min-saude.pt/comissao-de-etica/,
embora não esteja aí patente a parte do nosso trabalho que consistiu em
«negociar« com os investigadores alterações aos projetos que os tornaram mais
interessantes.5 Tem sido intelectualmente muito gratificante ver
esse trabalho reconhecido por muitos dos próprios investigadores. Desejo-lhe as
maiores felicidades profissionais e pessoais.
1. Art.º 26.º do Decreto-lei n.º 28/2008, de 28 de fevereiro.