07 janeiro 2011

Remuneração dos dadores de células estaminais hematopoiéticas

Blood (2011) 117 (1): 21–25

Remuneração dos dadores de células estaminais hematopoiéticas: 

princípios e perspetiva da Associação Mundial de Dadores de Medula Óssea

Tradução parcial do texto 


Michael Boo, Suzanna M. van Walraven, Jeremy Chapman, Brian Lindberg, Alexander H. Schmidt, Bronwen E. Shaw, Galen E. Switzer, Edward Yang, Torstein Egeland em representação
World Marrow Donor Association

[…]

Considerações éticas

A questão da remuneração da doação suscita certas preocupações éticas. O ato essencial em questão é a decisão por parte de uma pessoa não relacionada de se submeter a um procedimento médico em benefício de outra pessoa. Há um conjunto significativo de trabalhos em torno das questões éticas envolvidas nesse intercâmbio, especialmente no contexto da doação de órgãos sólidos e da utilização de dadores como sujeitos de investigação.

Três princípios éticos em particular são frequentemente alvo de escrutínio. O primeiro é o princípio da dignidade, visto que a transferência de parte de um corpo humano é diferente da de um produto ou serviço e exige considerações únicas para não desvalorizar a vida humana através da comercialização de órgãos, tecidos e sangue. O segundo princípio é que o dador não deve estar sujeito a danos desnecessários ou irrazoáveis. Finalmente, qualquer sistema de distribuição deve ser fundamentalmente justo. Em particular, nenhum segmento da sociedade deve ter benefícios à custa de outro ou permitir qualquer tipo de coação no processo de obtenção de células estaminais hematopoiéticas.

Dignidade

O conceito de dignidade baseia-se na ideia de que o corpo humano deve ser tratado como tendo um valor intrínseco que está além do valor económico potencial que pode ser atribuído a órgãos, tecidos ou sangue por alguém necessitado. Esta noção é fundada tanto em considerações religiosas como filosóficas. Muitas religiões sustentam que o corpo é uma dádiva sagrada de um ser superior e que uma pessoa tem o dever de proteger ou conservar essa dádiva. Qualquer dano ao corpo é uma violação desse dever, exceto se for para proteger a pessoa de outros danos. Numa perspetiva filosófica, é frequentemente feita referência aos ensinamentos de Immanuel Kant, cuja formulação de que a sociedade deve “tratar a humanidade ... sempre como um fim e não apenas como um meio” é frequentemente citada como a base para concluir que o pagamento por partes do corpo é uma má utilização de um ser humano, porque vê o dador como uma fonte de suprimento para a pessoa necessitada e não como um outro ser humano. Ao considerar apenas o valor económico de um órgão, tecido ou sangue doado, existe a potencial criação de mercados para partes do corpo. Em tal cenário, a venda de uma parte do corpo é vista como uma desvalorização da vida humana, implicando que o valor de uma pessoa se baseia no valor material do corpo e não na condição de ser humano racional. A doação sem remuneração é geralmente permitida no contexto religioso como um ato de caridade em benefício de um semelhante humano, enquanto no contexto filosófico a doação não remunerada é vista como um ato altruísta em benefício de outrem, não como uma mercantilização de um humano em benefício do outro.

O conceito de dignidade deve ser sopesado com o direito de a pessoa tomar decisões sobre o seu próprio corpo, razoavelmente livre do controlo da sociedade. Contudo, embora reconhecendo que a pessoa tem o direito de tomar decisões sobre o seu próprio corpo dentro de um vasto espectro de comportamentos, a sociedade tem interesse em evitar comportamentos que tenham certas consequências sociais que incluam a neutralização de pontos de vista ampla e profundamente reconhecidos quanto ao valor da vida. A preocupação primordial é que a pessoa seja valorizada como um ser humano distinto.

No contexto da dignidade, é frequentemente avançado um outro argumento a favor da remuneração, uma vez que diz respeito ao acesso das populações economicamente desfavorecidas a cuidados de saúde, onde tendem a existir mais grupos étnicos minoritários. No caso da doação de órgãos, a negação da recompensa com base na dignidade humana pode obstaculizar o acesso das populações minoritárias que beneficiariam da doação de pessoas da mesma etnia. Se esse grupo aceitar a remuneração, argumenta-se, o prejuízo é contrabalançado pelo benefício de pessoas do mesmo grupo étnico. Isto tem alguma repercussão em relação ao transplante de células estaminais hematopoiéticas de dador não relacionado, porque os doentes provavelmente encontrarão um dador dentro do seu próprio grupo étnico e os recenseamentos mais facilmente vão encontrar dadores dentro das populações minoritárias. Para sustentar este ponto de vista, tem de argumentar-se que o valor económico derivado da venda de partes do corpo é mais importante do que a defesa do conceito de dignidade pessoal e social dos seres humanos. Mas é precisamente este compromisso que mina o valor que a sociedade atribui ao ser humano. Pode também levar a uma maior mercantilização de pessoas ou grupos desfavorecidos, abrindo o potencial de remuneração para outras partes do corpo, diminuindo ainda mais o valor da pessoa ou população.

[…]

Recomendação

O preço atribuído ao valor da doação humana é literalmente o valor da vida, que não pode ser expresso em termos monetários. A remuneração dos dadores levanta questões éticas difíceis, tem o potencial de prejudicar a vontade pública de agir altruisticamente, e pode envolver coação e exploração dos dadores. Pode também colocar os doentes em risco acrescido, afetar negativamente os programas locais de transplante e o intercâmbio internacional de células estaminais, e pode beneficiar alguns doentes enquanto desfavorece outros. Estas preocupações têm resultado que, várias listas nacionais e regionais, bem como organismos legislativos e reguladores em todo o mundo, se opõem à remuneração pela doação de células estaminais, bem como de órgãos e sangue. A World Marrow Donor Association, portanto, conclui que a remuneração de dadores é indesejável e pode ser prejudicial para a comunidade internacional de transplantes, tanto de doentes como de dadores.