Houve tempos em que os médicos consideravam o processo clínico como a sua memória. Era o sítio onde guardavam as suas notas para, quando necessário, recuperar dados sobre sintomas, queixas, prescrições, exames – retratos dos «seus» doentes.
Depois, os doentes deixaram de ser «seus» e o processo
clínico passou a ser a memória da equipa. Um regista a história, outro (ou o
mesmo) regista os exames complementares, outro (ou o mesmo) anota as hipóteses
diagnósticas e mais alguém regista prescrições, diagnósticos de alta,
referenciações futuras, etc. Deixou de ser a memória do médico, passou a ser a
memória da instituição.
Mas chegou o tempo em que se pensou que os dados de saúde
não eram de quem os anotava mas da pessoa a quem diziam respeito (dizer
respeito = referir-se a). É o tempo da autonomia, melhor, do respeito pela
autonomia das pessoas que «vão ao médico». Se alguém anota algo sobre mim,
eu tenho direito a saber o que consta dessas anotações – são minhas.
Este conceito de propriedade, depois de controverso, passou
a natural e lógico. Os dados sobre a minha pessoa só podem ser meus. E se
estão errados quero que os eliminem ou corrijam.
O princípio do respeito pela autonomia do doente, associado
aos outros princípios nobres da bioética, é hoje aceite sem reservas pela
generalidade dos agentes da saúde e constitui a base sólida do consentimento
informado, livre e esclarecido. Se me é reconhecido o direito a decidir
sobre o meu futuro, se posso aceitar ou não tratamentos que me são explicados,
se posso escolher entre ser operado ou morrer com paliativos que diminuam o meu
sofrer, então não entendo como podem esconder-me o que sobre mim consta dos
registos clínicos.
Foi, certamente, por isso que o legislador, esse
«desconhecido», contemplou na Lei n.º 12/2005 (art.º 3.º) que a «informação
de saúde, incluindo os dados clínicos registados, resultados de análises e
outros exames subsidiários, intervenções e diagnósticos, é propriedade da
pessoa», embora concedendo que o «acesso à informação de saúde por parte
do seu titular, ou de terceiros com o seu consentimento, é feito através de
médico, com habilitação própria, escolhido pelo titular da informação».
Mais tarde, porém, esse mesmo legislador acaba por
reconhecer que, se a autonomia do titular dos dados de saúde precisa de ser
tutelada por um intermediário, «com habilitação própria» – o que quer
que isso signifique –, tal representa uma clara limitação à dita autonomia.
Pode mesmo dizer-se que é a marca de um paternalismo anacrónico. É então que
surge a Lei n.º 46/ 2007 (art.º 7.º) que refere, expressamente, que a «comunicação
de dados de saúde é feita por intermédio de médico se o requerente o solicitar».
Ou seja, a intermediação existe mas só se eu a pedir.
Mais uma vez (por vezes demasiado tarde!) se vê que a lei
segue a ética. Estranha-se, assim, o que dizem alguns (como por exemplo, Daniel
Serrão na «Semana Médica») quando se manifestam contra esse conceito também
preconizado no projeto de lei n.º 788 sobre os «Direitos dos doentes à
informação e ao consentimento informado». É certo que este projeto mereceu
críticas justas e mesmo parecer negativo do CNECV mas, na perspetiva em que
aqui se discorre, houve alguma injustiça nessas apreciações. A intermediação
obrigatória de médico para acesso aos meus dados clínicos é incompatível com o
respeito pela minha autonomia.
Se já há lei, se já há aceitação ética, não resta aos fiéis
«depositários da informação» de saúde senão assegurarem que ela não
contém inexatidões e está resguardada de acessos indevidos. E, quando eu os
quiser ver, não compreendo por que me será negado o direito a conhecer os meus
dados clínicos, seja para tomar uma decisão com efeitos imediatos, seja para
efeitos futuros.
É por estas e outras razões que urge não adiar mais a
aprovação de uma legislação que, com a necessária sustentação ética, garanta
aos cidadãos deste país o direito a, querendo, materializar, antecipadamente,
uma vontade que deva ser respeitada, caso fiquem sem condições de a poderem
expressar. Quero que a lei respeite a minha autonomia. E que seja essa
interpretação do disposto na Convenção de Oviedo (Resolução da Assembleia a República n.º 1/2001, Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da
Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção
sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, artigo 9.º) quando estipula que a «vontade
anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente
que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua
vontade, será tomada em conta». Será tomada em conta!
[Notas gráficas: As palavras em itálico referem-se à
minha posição como cidadão. As palavras sublinhadas estão no Diário da
República. As outras são escritas na condição de membro (aposentado) da Ordem
dos Médicos.]