Passados que foram 10
anos sobre a publicação na Acta Médica Portuguesa do «Guia de Diagnóstico de Morte Cerebral»1 voltam à liça argumentos sobre a
definição de morte quando se discute a colheita de órgãos em dadores com
coração parado.
Recordo, com alguma vaidade, os trabalhos da comissão de
que fiz parte2 e as participações de Paula Coutinho, Nelson Rocha,
Mário Lopes e Dílio Alves, assim como os debates que precederam a redação
final.
Recordo e reproduzo os primeiros parágrafos da Introdução
ao «Guia»:
«Durante séculos, a morte foi definida pela paragem cardiorrespiratória irreversível. O desenvolvimento, nas últimas décadas, de técnicas de ventilação mecânica, suporte circulatório e diálise em doentes em coma profundo ditou a necessidade de definição de um novo conceito, o de morte cerebral, situação em que todas as funções cerebrais estão irreversivelmente comprometidas embora o coração continue a bater e a respiração seja assegurada artificialmente. A experiência acumulada demonstrou que a verificação da morte cerebral, segundo os critérios atualmente aceites, determina inexoravelmente, em horas ou poucos dias, a assistolia e morte somática, apesar do recurso às melhores técnicas de cuidados intensivos. Em certas doenças (de natureza vascular, traumática ou outras) a lesão do sistema nervoso central cria uma hipertensão intracraniana que ultrapassa a pressão de perfusão arterial, impedindo a circulação encefálica. A partir desse momento, e apesar de uma circulação e oxigenação eficazes nos outros departamentos orgânicos, o encéfalo entra em autólise e vai decompor- se nas horas imediatas. Esta situação pode prolongar-se com elevados custos, não apenas do ponto de vista de gastos hospitalares, mas, sobretudo, de ansiedade e falsas esperanças de uma família.
Importa, como primeiro objetivo, salvaguardar o respeito pela dignidade da pessoa (que é ou que foi) e pela sua condição de ser humano vivo ou, eventualmente, já falecido. Por tudo isto, sucederam-se, ao longo dos anos, critérios de morte cerebral que foram evoluindo desde os iniciais, mais complicados, até aos atuais – simples, essencialmente clínicos, inteiramente fiáveis e reprodutíveis.»
Uma década depois, a aplicação concreta e amplamente
generalizada dos critérios orientadores do «Guia» representa a sua validação,
não se tendo feito sentir a necessidade da sua eventual revisão3,
pese embora a recomendação, feita mas não atendida, de se formar uma comissão
de acompanhamento na Ordem dos Médicos.
Com a publicação deste «Guia» e, sobretudo, com a sua
utilização, tornou-se mais fácil lidar, a nível profissional, com as dúvidas
éticas que sempre surgem na hora da verificação de um óbito apesar da
existência de batimentos cardíacos. Os critérios clínicos, consolidados em
casos extremos por meios auxiliares de diagnóstico, mostraram ser
suficientemente fortes para suspender intervenções que deixam de ser fúteis
para passarem a ser inúteis.
O reconhecimento da morte cerebral não representa o
reconhecimento de que haja duas mortes possíveis. Ou que haja duas formas de
morrer. Morte há uma!
Aliás, sobre esta questão, não deve ignorar-se que está
em vigor a Lei n.º 141/994, em cuja redação também tive o privilégio
de participar em nome da Ordem dos Médicos. Assim, desde Agosto de 1999, a lei
portuguesa considera que «a morte corresponde à cessação irreversível das
funções do tronco cerebral», o que, como se sabe, também acontece na paragem
cardiorrespiratória ocorrida fora do contexto de suporte artificial de funções
vitais.
O conceito de morte cerebral não passa de um requisito
suplementar utilizável quando é preciso reconhecer que uma pessoa está em
situação irreversível, sem regresso possível à vida. As dificuldades
linguísticas e semânticas para a definição de vida e de morte não se colocam
quando, perante um corpo, em paragem cardiorrespiratória, começa a arrefecer, a
mudar de cor e a dar sinais generalizados de degradação tecidular. A questão
está, pois, em estarmos seguros de que a vida acabou e aquele corpo merece que
o respeitem enquanto cadáver da pessoa que foi.
Quando, depois de verificados todos os critérios do
diagnóstico de morte cerebral, se pode declarar o óbito, a morte assim
verificada não difere da morte verificada fora das unidades de cuidados
intensivos. É que vida também só há uma! Contudo, importa que os médicos saibam
manter a comunidade suficientemente informada do que fazem, como o fazem e
porque o fazem5.
As questões utilitárias do aproveitamento de tecidos ou
órgãos de pessoa falecida não podem ignorar que a morte não é instantânea em
todos os lugares do corpo e que é possível e ético salvar outras vidas com
recurso a transplantes.
Alguns autores discutem a bondade deste aproveitamento
por recearem aplicações levianas ou apressadas dos critérios. Esta discussão
ganha nova força a propósito da colheita de órgãos em situações de coração
parado6. O tempo de espera para declarar a morte em casos de paragem
cardíaca e o tempo em que se devem manter manobras que permitam assegurar a
vitalidade de órgãos, em pessoa morta, são parte de um novo problema com que se
debatem os socorristas numa sociedade onde, cada vez mais, parece pensar- se
que a morte é sempre evitável.
Está na hora de encarar as diversas facetas deste novo
problema e de encontrar respostas éticas e aceites pelos médicos e pela
comunidade7. A iniciativa pode ser da Ordem dos Médicos ou do
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida mas convinha que não fosse
tardia.
1 Guia de Diagnóstico de Morte Cerebral. Acta Médica Portuguesa 1998 Jan;11(1):91-5
4 Diário da República Electrónico
5 Kerridge IH, Saul P, Lowe M, McPhee J, Williams D. Death, dying and donation: organ transplantation and the diagnosis of death. Journal of Medical Ethics 2002;28:89-94